segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Uma lenda e os mascarados

Longe de ser perfeito. Pelo contrário, deu-nos grandes dores de cabeça. Talvez pela nossa incapacidade de compreensão, talvez pela sua incapacidade de se fazer compreender, ou ainda porque fosse tão humano, ainda mais em seus erros. O fato é que eu nunca quis me concentrar muito neste aspecto, porque havia coisas muito mais interessantes ao seu respeito. Acompanhei, por exemplo, uma vida pública marcada de polêmicas, que a mim sempre pareceram rupturas de tabus e amarras que o impediriam de seguir em frente. Parece que sempre havia algo a provar, principalmente quando se tratava de vida pessoal. Por muito tempo, questionaram sua forma de viver em família, sem saber que seu conceito de família era muito mais amplo e muito menos mesquinho de muitos que se diziam porta-vozes da moral. Ele foi um cidadão comum, que errava como você, como seu vizinho, mas que tentou não se esconder da sua verdade. Hoje, as pessoas riem disso. Era mais uma de suas peripécias. É o único que conseguiu sobrepor-se aos seus "deslizes" porque o que tinha de bom sempre foi infinitamente maior. E é exatamente isso que outros não entendiam. O povo sempre lhe perdoou. Imagino que enxergavam ali um ser humano e não uma autoridade. Não esqueço estas pessoas que o provocavam, que procuravam cutucar feridas que nem mesmo existiam entre nós, a família de sangue. Não esqueço a maldade, da intromissão, da invasão de nossas vidas. Mas deixa para lá. Eu não esqueci, mas você pode esquecer. Afinal, a ele não mais atingia, porque era resguardado pela sua família de coração, a quem amou com todas as suas forças. O ingresso na vida pública, como podem observar, não foi fácil. Olhando assim, hoje, parece que foi natural e que de outra forma não poderia ser. Sem métodos específicos, sem tanta certeza, mas com conhecimento da essência da voz que ecoava nos bares, nas ruas, nas casas, surgiam-lhe as ideias mais óbvias e, paradoxalmente, mais originais. Pecava pelas poucas formalidades, pela falta de ordem e pela pressa em resolver, ainda que as consequências pudessem lhe trazer problemas futuros. Errou por isso e acertou também. Mais ainda ao revolucionar a forma de administrar, uma nova visão que encerrava a era dos reis e dos superegos, que foi capaz de adaptar-se aos novos tempos, integrar-se ao que se pensava como gestão moderna, mais profissional - não necessariamente metódica - e, principalmente, mais humana. E foi pioneiro. Foi inteligente ao aderir programas sociais estaduais e federais com competência e estrutura, tanto que foi modelo para muitos deles. E foi perspicaz ao criar seus próprios programas, não sozinho, obviamente, mas boa parte deles baseados na sua experiência de vida que, com certeza, não se forjou em tribunas ou gabinetes. Os seus programas têm mais de dez anos e somente agora há projetos de cunho federal que contemplam a mesma proposta, ainda que, a meu ver, falha, principalmente ao jogar a responsabilidade de execução ao município sem prover os recursos mínimos para sua viabilidade. É até engraçado supor que havia pessoas que não viam nenhuma virtude em seus atos e que até hoje se mantêm na triste sina de criticar o que não são capazes de criar. Tem a infeliz ideia de incluí-lo no que chamam de "continuísmo perverso", que "oprime as pessoas" pelo "poderio econômico". Irônico, não é? Considerando até a sua personalidade e história de vida, que sempre foi o oposto disso. É ainda mais engraçado vê-los tentando esquecer seu próprio passado, negar que eram seus críticos, fingir, agora, que se importam, esconder os punhais que carregavam para tentar impedir seus avanços. Aliás, não sei se é engraçado ou triste. Eu não esqueci, mas você pode ter esquecido. Ainda que estes detalhes sejam apagados, creio que o que vale é o grande legado que esta história deixou. Uma das heranças é uma maioria de pessoas mais exigentes, porque finalmente entenderam que devem ser ouvidas e tratadas com seriedade. Outra, que políticos podem ser homens realmente preocupados com os outros, embora muitos por aí ainda preguem uma coisa em seus discursos e, em seus atos pessoais, passem a perna no primeiro desavisado. Ainda, o exemplo de como a gestão pública deve ser tratada - com conhecimento, preparo, participação e com um ambiente favorável à inovação, momento em que voltamos à chave do conhecimento. Isso não se adquire em três meses lendo relatórios, que despem os números de seus fatores humanos, tampouco surge de planos de governo no formato colcha de retalhos - cujas palavras estão fielmente retratadas em outros documentos ou mesmo outros planos de governo (lembra o que falei sobre a incapacidade de criar). Como eu disse, não sei se é engraçado ou triste, mas ainda creio com todas as minhas forças que o legado de uma lenda prevalecerá, afinal, aprendi em todos estes anos que só se mantém aquilo que for comprovadamente bom para a maioria. O resto: são só palavras. Perdoem-me, mas não consigo fazer jus a um tributo se não puder dizer, falar, escrever, expressar o que vivi e o que vivo. Penso que esta é a minha justa homenagem, gratidão e reconhecimento. Ainda bem que minhas palavras não me escravizam. Que comece a temporada dos chapéus, ou seria o baile de máscaras?

domingo, 18 de março de 2012

O dia em que Mercedes morreu











Não é necessário escrever em meias palavras. No dia em que La Negra se foi, estava aqui nos fundos, quando ainda morava aqui. Ouvi um grito que vinha da janela do andar superior: era ele avisando que a Mercedes Sosa tinha morrido. Eu já sabia que ela não estava bem. Vinha acompanhando a história de sua doença com uma esperança de que fosse imortal. E não era. Mas sua música foi e será, ao menos para a nossa família. Quando olho hoje um show de Mercedes e vejo minha filha, de dois anos, reconhecer os versos de “Corazón Libre”, volto no tempo quase que instantaneamente. Meu pai sempre disse que quem lhe ensinou alguma coisa sobre cultura foi minha mãe. Sempre contava a história de que ela havia lhe mostrado, na sua adolescência, algumas músicas de La Negra. Começaram assim como casal, ao som de “Gracias a la vida” e tantas outras. Quando éramos pequenas, eu e a Carolina, não ouvíamos outras músicas, não sabíamos o que estava na moda – ouvíamos Mercedes. Criamo-nos amando esta voz insuperável. Até que tivemos a oportunidade, já com mais de vinte anos, de vê-la pessoalmente, em um show na Vigília, em Cachoeira do Sul. Ironicamente no local em que meu avô, pai de minha mãe, viveu seu tempo derradeiro. Fomos, com o meu pai, aquele que havia aprendido a amar esta voz tanto quanto todos nós. Só Deus sabe o que isso significou. O que para tantos outros era só uma cantora a mais, para nós era um momento divino. E agradeço todos os dias por ter vivido este momento. Passamos a amar ainda mais tudo isso. De certa forma, era o nosso código secreto. Uma deusa que louvávamos e que nos aproximava, sempre, ainda que tudo...
E aquele dia, quem me deu a notícia foi meu pai, que aprendeu a amá-la não só pela sua divindade, mas porque, como ele, era uma revolucionária, cuja arma era a voz. Todos nós continuamos a amá-la profundamente, como se parte de nós fosse, como se fosse também um trecho de nossa história. Naquele mesmo dia, minha irmã fez seu tributo particular. Não ousou ouvir outra música que não fosse embalada pela voz penetrante de “La Negra”. E assim fizemos a nossa homenagem.
Depois de um tempo, a mãe resolveu que “Corazón Libre” traduzia parte do que queria viver como cantora. Quem conhece a letra, sabe que tem tanto o que dizer sobre nossa vida e nossas relações de amor profundo e de respeito uns pelos outros.
Cá estamos, pensando em nossas duas inspirações, como se não pudéssemos dissociar uma coisa da outra. Felizes de termos conhecido Mercedes e gratos de termos escrito nossa história com uma lenda chamada Chicão.

“Durar não é estar vivo, coração... viver é outra coisa”.